31 janeiro 2011

Caça ao Tesouro

Ao som de Mis Mejores Recuerdos - Diego Fontecilla.


Existem muitos segredos que não gostamos de comentar. Um deles tem mexido muito comigo ultimamente e mais uma vez gira em torno do meu passado e da minha memória sempre tão nostálgica. Neste momento existe uma trama dentro da minha cabeça que interliga lembranças, desejos, sensações. Uma trama que resolveu brincar de "caça ao tesouro" me entregando partes de um mapa. Tenho decifrado essas partes todas as noites, durante recorrentes sonhos; todos os dias, enquanto relembro histórias que estavam escondidas a cerca de 18 anos atrás. Talvez ninguém consiga entender o que estou sentindo agora. O peito apertado tem machucado meu coração. Justamente esse coração que sempre chamaram de forte. Nunca fui de chorar, mas dentro de mim estou morrendo em soluços. Juntei as peças do mapa e agora criei minha própria estratégia para resgatar um prêmio que ainda não sei ao certo qual é.
Sou do interior, apesar de ter parte da família morando em Goiânia. Isso me permitiu ter visitado esta cidade algumas vezes na minha infância. Minha memória recorda apenas detalhes: eu e meus pais sendo recebidos pelos tios na rodoviária, o nascer do sol daquela manhã visto do mezanino do prédio, minha blusa de frio de listras coloridas. Eu tinha apenas 5 anos. De volta a Mineiros alguns poucos anos mais tarde, com lembranças mais vivas, me recordo das inúmeras vezes em que retornei a Goiânia por conta de problemas de saúde da minha avó. Nenhuma dessas viagens se tornou marcante, mas os detalhes pipocam. Me lembro de segurar na mão do meu pai enquanto ele atravessava a avenida Tocantins para me comprar chicletes. Me lembro de sair da clínica com meu pai e minha avó para irmos almoçar do outro lado da rua. Me lembro da casa das primas onde minha vó sempre se hospedava enquanto estava passando pelo seu tratamento.
Eu tinha medo de Goiânia nessa época, já com meus 8 anos de idade. Tinha medo porque apesar das inúmeras vezes que vinha para cá, não sabia nada daqui. Não conhecia ruas, lugares, me sentia perdido entre tantos prédios, carros, pessoas. Lembro que isso me irritava, porque meu pai sabia exatamente cada rua que deveria pegar. Queria ser como ele e não conseguia. Hoje, 14 anos depois, a cidade que me engolia agora é engolida por mim. Papeis se inverteram e meu pai precisa de mim para conseguir andar pelas ruas daqui. Goiânia não me assusta mais.
Então paro para me lembrar de que nunca pensei em morar aqui. Vim para fazer faculdade. Eu, o último filho a concluir o ensino superior. Recordo da minha avó dizendo que o sonho dela era formar um dos dois únicos netos. Ela formou o primeiro e se foi. E não que eu me revolte agora, mas ela não conseguiu me esperar. Justo eu, que vim pra cidade que ela tanto adorava. E, caminhando hoje pelos mesmos lugares que passei na infância, me pego pensando em quão mágico seria poder caminhar junto com ela, revivendo junto com ela seus mesmos passos aqui. Não posso.
Me pego redescobrindo lugares. Me emocionei quando voltava da faculdade e o ônibus parou em um dos cruzamentos da avenida Tocantins. Olhei para o lado e reconheci o bar onde meu pai comprou os chicletes para mim. Ele continua lá e, apesar dos anos e das mudanças, consigo sentir seu interior. No fim do ano passado perguntei ao meu pai qual o endereço da clínica onde minha avó fazia seu tratamento. E me assustei porque durante meu estágio, passava pelo mesmo local todos os dias. A clínica e as lembranças estavam ali, era só virar uma esquina.
Há dois dias venho sonhando com minha avó. Sinto tanta falta dela, sinto falta do seu ar de "dondoca" enquanto caminhava em Goiânia e fazia suas compras. Nos sonhos ela revivia comigo, andava comigo pelos mesmos lugares por onde passamos juntos quando eu era criança. Eu pergunto "vó, lembra daqui" e vejo nos seus olhos a alegria de reviver tudo aquilo, apesar do seu sofrimento não revelado nunca. Como disse, ela adorava Goiânia e tratamento algum tiraria esses bons momentos dela.
Subitamente minha memória me leva para o dia em que ela se foi. Eu ainda morava em Mineiros. Lembro de ser forte, de resistir e ligar para os parentes daqui de Goiânia. Lembro de me irritar em seu velório por conta de gente desrespeitosa contando piadas lá fora. Lembro de voltar pra casa e trocar de roupa antes do seu enterro.
Como disse, choro em raros momentos. E esse dia foi o que eu mais chorei. Ver meu avô, fraco pelo Alzheimer, se despedir da "sua velha" e botar os óculos escuros bem femininos que foram dela enquanto fechavam seu caixão me desmontou por dentro e eu consegui me segurar. Enquanto, no cemitério, desciam seu caixão, percebi que nunca mais teria a companhia daquela vozinha linda, baixinha, que por anos cuidou de mim enquanto meus pais trabalhavam. Lembro também da minha mãe preocupada porque nunca tinha me visto chorar tanto. Minha mãe estava perdida. A mais emotiva numa família composta por ela e mais três homens vendo esses três homens chorando como bebês. Meu pai, filho dessa minha avó chorando muito, como eu jamais tinha visto. Meu irmão chorando muito. Eu soluçando, pedindo praquela dor parar.
Um ano depois de sua morte me mudei para cá e só agora descobri que vivia aqui há 16 anos atrás, mesmo que em poucos momentos. Os sonhos com minha avó despertaram em mim aspectos que eu não conhecia, me fizeram sentir frágil, bastante enfraquecido, e cheguei a conclusão que essa tal "caça ao tesouro" me dará força para abrir esse baú. Juntei todas as peças e só então me lembrei de um dia em que, aqui em Goiânia, minha vó havia perguntado qual meu tipo sanguíneo. Ela tinha uma deficiência no sangue e precisava de transfusões a cada quatro meses. Quando disse qual era, lembro que ela riu e disse que era o mesmo que o meu.
Vó, onde quer que você esteja, seja por qual motivo for, interpretei meus sonhos com você. Tínhamos o mesmo tipo sanguíneo e nunca percebi que hoje, se você ainda estivesse viva, poderia eu ser o seu doador particular. Sei que não há mais tempo para isso. Você se foi. Mas eu não. A sua clínica ainda continua lá e precisa de doadores. Não posso mais te ajudar, mas ainda existem inúmeras pessoas nesse mundo com seu mesmo problema, que precisam de ajuda. Quero poder fazer a minha parte. Quero doar meu sangue em gratidão a você. Quero reviver nossa história indo ao mesmo centro clínico apenas para doar o sangue que nunca pude te dar. É uma atitude louvável e bonita. Mas para mim é mais que isso. Significa finalmente que conectei todas as minhas lembranças em um ponto só.

1 COMENTÁRIOS:

Danilo Mota disse...

Gordo, você é foda, cara... muito foda.