20 março 2011

Desligo.

Você não é apaixonante. Não é apaixonado. Você também não é tão forte quanto diz. Você não precisa se mostrar, ou muito menos se esconder. Você passou toda uma vida tentando encontrar uma resposta para seus sentimentos, sempre desconectados, sempre tão avulsos e incompreensíveis.

05 março 2011

Me espera.

Ao som de Bachiana Brasileira n°4 (prelúdio) - Heitor Villa-Lobos.


Girar a chave na fechadura era o que ele esperara por todo o dia. Tinha sido uma sexta-feira carregada, daquelas que sugam todas as nossas energias e nos deixam sem ânimo para sequer conversar. Ele não conversava, não era de ter amigos. Não tinha ninguém para descarregar seus problemas. Era ele, e só. No apartamento, o relógio da sala marcava nove horas e trinta e sete minutos. Abriu a porta de vidro da sacada e sentiu o vento lhe soprar os fios de cabelo enquanto ao mesmo tempo fazia a cortina tremular. Naquele exato momento, seu gato se entrelaçava por suas pernas. Abaixou e afagou lhe a cabeça por um instante. Enquanto caminhava para a cozinha, ia tirando a gravata e desabotoando os botões superiores da camisa branca. Encheu um copo com um pouco de whisky e algumas poucas pedras de gelo. Para ele, era o suficiente. Completando seu ritual de desintoxicação psicológica, se dirigiu até seu aparelho de som. Villa-Lobos. "Bachiana Brasileira nº 4" começou então a tocar. Ele sabia do que precisava. Colocou a música para se repetir e se dirigiu novamente à sacada.
Ali estava ele. Um homem na altura dos seus vinte e oito anos, com um bom emprego que lhe sugava as energias em boa parte do tempo. Pensou em quando desejou fazer de tudo na vida e decidiu optar por aquilo. Curioso é que naquela época ele se imaginava exatamente como estava vivendo agora. Deu um pequeno gole na sua bebida, depois outro. Olhou para os prédios à sua frente, as luzes coloridas se casavam perfeitamente com o som da cidade, as buzinas, os rugidos da metrópole e os sopros persistentes do vento.
Ele sempre soube que era alguém sozinho. Sempre se sentiu assim. E aprendeu a lidar com isso, na medida do possível, depois de longos anos entre erros e mais erros em relacionamentos nunca consumados. Como justificativa mais plausível, apresentava a ele mesmo seu eu possessivo e passional. Sabia que por mais fechado que fosse, não suportaria um relacionamento e tudo que essa palavra pudesse representar.
Sempre teve um gosto relativamente estranho na escolha de suas paixões. Abdicava facilmente de qualquer beleza por um punhado de intelectualidade mesclado com uma essência completamente pura de quem se permite sonhar. Se apaixonava por vozes, pela forma de escrever de qualquer pessoa. Era obcecado por detalhes. E era completamente possessivo em relação a gostar de alguém. Se entrasse em algum relacionamento, ele com certeza sofreria, mas faria o outro sofrer muito mais. E isso, ele não queria. Era um defeito seu que ele não gostaria que ninguém soubesse.
Olhava novamente para as luzes da cidade enquanto dava mais um gole na sua dose de whisky. Pôs a mão instintivamente no seu bolso esquerdo e de lá tirou um maço de cigarros um pouco amassado. Em posse de um, o acendeu e começou a pensar. O gato agora estava ao seu lado, em cima da mureta da sacada. Eram os dois ali. Tão diferentes, mas tão iguais em alma... Tão solitários. Tinham apenas um ao outro. Ambos não faziam nenhum som, mas se comunicavam tão bem...
O homem foi até a cozinha, agora para buscar a garrafa de whisky e trazê-la até a sacada. Ao voltar, entrou em transe. Começou a relembrar sua infância, seus sonhos, seus anseios. Se viu novamente naquele patamar onde ele sempre sonhou estar. Mas faltava-lhe algo: uma companhia. Uma companhia de verdade. De fato, por anos ele descontou em um gato a ausência de um ser humano. Seus amigos todos tinham dado rumo às suas vidas, nenhum deles estava mais ao seu alcance e ele não podia fazer nada em relação a isso. Não gostava de telefonemas, não tinha tempo para escrever cartas ou e-mails. Foi quando se viu, pela primeira vez, com a necessidade de ter alguém com quem pudesse compartilhar todas as suas alegrias, todas as suas angústias. Seus medos, suas vitórias. Alguém para dividir a mesa no café da manhã. E a cidade ali, à sua frente, agora lhe apresentava "n" possibilidades de encontros. "N" pessoas com quem ele poderia tentar se relacionar. "Me espera?", foi o que ele conseguiu dizer.
Àquela altura da madrugada ninguém ouviria seus lamentos. Era a hora errada para ele ter um rompante de certeza como aquele. Ele agora se sentia incomodado com o fato de estar só. Encheu mais uma vez seu copo e acendeu outro cigarro. Pegou seu celular e passeou pelos contatos salvos na agenda. Parou em um. Ligava ou não? Se declarava ou esquecia tudo aquilo. Ele se sentia como se estivesse caindo mais uma vez no mesmo buraco. Já havia se declarado uma vez e não tinha boas lembranças disso.
Resolveu ligar. Caiu na caixa postal. Ele então deixou o seguinte recado, que foram os segundos de maior sinceridade que ele havia tido até então:
"Ei... Me desculpe por te ligar a essa hora. Mas estou apaixonado por você. Estou um pouco bêbado, o que me deu coragem para te dizer isso. Não estou pedindo nada em troca. E nem quero te assustar com esse rompante de sinceridade que estou tendo nesse momento. Justo eu, um homem de vinte e oito anos... Passei a minha vida toda fugindo de relacionamentos, hoje todos os meus amigos estão longe e não tenho ninguém com quem compartilhar minhas dúvidas ou conquistas. Enfim. Nem sei por que estou lhe dizendo isso. Boa noite. Durma bem."
Desligou o telefone e se sentiu a pessoa mais horrível do mundo. Decidiu ir ao banheiro. No meio do caminho seu telefone tocou. E incrivelmente do outro lado da linha uma voz sonolenta lhe disse algo que lhe fez sorrir como nunca havia sorrido antes:

"Oi. Você está aí? Posso confessar que também sinto o mesmo que você? Você está acordado, né? Olha... Eu não sei se o que eu estou fazendo é certo, mas... Eu perdi o sono e decidi sair de casa. Estou passando aí. Me espera? Acho que temos muito o que conversar..."