25 março 2010

O pintor de quadros.

Ao som de Olsen Olsen - Sigur Rós.

Em algum lugar neste mundo existia uma cidade. E em meio a milhões, existia uma única pessoa capaz de sentir o que ninguém conseguia sentir. Essa pessoa era especial, trazia como bagagem a experimentação de duas vidas, cada uma separada por fases que vão e voltam, derramando pingos de passado nos olhos do futuro. Apesar de tudo, era uma pessoa capaz de sonhar. Talvez isso a fizesse diferente. Seus sonhos eram só seus, mesmo essa pessoa querendo que esses sonhos se exteriorizassem e atingissem um único coração, que poderia ser outro amanhã, e depois outro, e mais outro. Naquele momento tudo estava voltado para um único lugar, um mesmo lugar.
Ele tinha amigos, confidentes, admiradores. Só que ele também tinha uma cabeça que lhe mostrava a outra face da cidade, aquela de pessoas frias e esquisitas. Ele não podia entender por que todos eram diferentes, por que todos agiam pelos seus próprios interesses. Por que não viam o mundo com seus olhos de sonhador? Foi quando se isolou. E se trancou. Dentro de um corpo tudo estava guardado, sem saída, sem lugar para respirar. Não se importava, tudo estava bem.
Ele tinha dons. Fotografava palavras em sua mente e pintava quadros com o olhar. Como todo artista, sua observação se tornava aguçada nos momentos de inspiração. E foi em um deles que tudo aconteceu. Era madrugada e no horizonte nuvens tocavam o chão. Mudo, olhou para o lado e começou a conversar. Sim, não tinha ninguém ali, mas ele conseguia perceber ele próprio ali do lado, olhando e conversando, trançando as mesmas palavras mudas daquele dialeto que ele conseguiu criar.
Seguiu-se assim por alguns minutos. Ele contava sua vida para o seu outro eu, que pacientemente ouvia tudo, confirmando com sorrisos seu interesse de estar naquele lugar. Riram, choraram, se abraçaram e trocaram juras de amor. Seria egoísmo da sua parte amar a si mesmo? Mas ele sentia que sua falta de limites preenchia o espaço da desconfiança e que seu coração não lhe deixava enganar: estava diante da pessoa mais sincera do mundo.
Vejam só: mais um dia começou a nascer. Estava na hora daquele encontro acabar. Pediu licença para fotografar as palavras da despedida, enquanto pintava mais uma vez com os olhos, agora todo o cenário do céu a clarear. Quando terminou, ambos estavam sentados e foi assim que os dois voltaram a ser um. O seu eu lhe ofereçera o colo, onde ele deitou a cabeça, encolheu os pés e sentiu firme os braços que lhe trouxeram calma. Seu eu sorriu, inclinou a cabeça e se moldou à parede que servia de encosto desde então. Ambos dormiram. Foi a última vez. Quando acordar, ele terá consigo o coração daquele ser que novamente lhe permitira sonhar.