01 setembro 2012

Caminhos

Ao som de Varðeldur - Sigur Rós.

Ele estava com a cabeça a mil. Era um turbilhão de sensações que ele estava descobrindo nos últimos dias. Fez aniversário e envelheceu dez anos em experiências. Começou com ciúmes, passou para amor. Transformou-se em afeto e um pouco de indiferença. Agora era ira. Ele que dias antes estava nos pés de uma montanha se via agora a poucos passos do topo. Cansaço e dores se tornaram tão recorrentes que ele nem se dava ao trabalho de senti-los. Eles haviam se transformado em companheiros de jornada, com os quais dividiam interesses e compartilhavam histórias. Viraram grandes amigos e não sabiam mais se separar, mesmo que no topo, depois de um longo e demorado abraço, aquela sensação de voltar e seguir cada um a sua vida tomasse conta do seu coração. Para ele não importava. O desejo era chegar no topo e ficar horas observando a vista. Ou não mais. Na verdade neste momento o desejo dele era apenas ter estabilidade. Aquele vento forte que tanto o instigava agora passava a te desafiar, empurrando-o para fora do seu caminho. Aquele vento forte tornou-se o principal inimigo de quem conseguia se equilibrar em qualquer lugar. Mas à medida em que o vento soprava, seus pés alçavam mais alguns milímetros rumo à consagração. E a bandeira amarrada na mochila tremulava, como se isso significasse um riso irônico de quem sabe que por mais que o corpo demonstre fraqueza, a cabeça ainda sabe ser forte. Mas as ironias que ele sempre via eram uma armadura, uma espécie de demonstração de uma força que não existia mais. Agora faltava oxigênio. Nas alturas, a respiração passou a ser forçada e náuseas invadiam seu corpo. Vomitou. Apoiou a palma das mãos nos joelhos e reconsiderou sua jornada. A dor e o cansaço calaram-se em respeito e ele pode pensar. Talvez o último pensamento são antes que os próximos passos tomassem sua lucidez. Apoiado em uma bengala feita com um pedaço de algum galho seco, ele foi cravando cada novo centímetro. O vento se fazia mais forte e, mesmo sem saber como, ele também se fazia assim. Desafios o levavam além. O sol sobre sua cabeça já não se fazia mais tão quente e as cores douradas da paisagem serviam apenas como fotografia para seus olhos cansados. A essa altura, uma nova companhia havia surgido: ossos de algum aventureiro que por forças do destino não conseguiu completar aquele desafio o hipnotizaram. Não por medo, mas por fascínio. Ele então se deu conta que aquele caminho não era só seu. Muitos outros o fizeram e alguns ainda o farão. Alguns com sucesso, outros como o amigo aventureiro que agora fazia parte da paisagem. Parou, orou e agradeceu pela bênção de ainda conseguir se mover. Prometeu a si mesmo que concluiria seu destino em homenagem àqueles que não tiveram a mesma sorte. Para ele eram agora três passos. Três passos que demoraram algumas horas para serem trilhados. Acima dele, apenas o céu. Havia chegado no local onde fincaria a bandeira e deixaria sua marca, algo que nunca antes ele havia feito. Ele riu. Riu enquanto seus olhos teimavam em chorar. Mais uma vez as mãos tocaram os joelhos e ele sucumbiu. Caiu anestesiado no topo onde as duras pedras agora eram mais macias que penas. Ou nuvens. Literalmente no céu. Sentou-se e olhou para baixo. Reconheceu seu esforço e viu uma trilha de histórias vividas por ele durante o caminho. Nada mais importava. Os desafios da volta começavam a lhe preocupar, mas ele não se importava mais. Havia chegado ao ápice daquilo que muitos escaladores acreditavam ser o olhar ao seu interior. E isso já lhe bastava. Entendia de fato que não existe razão ou resposta certa para aquilo que ele procurava. Existiam trilhas e trilhas de possibilidades que ele ainda teria que explorar.

10 agosto 2012

A vida em preto e branco

Então eu sou uma torre. Ali, parada no quadrado negro de um grande tabuleiro de xadrez, vendo tudo, observando todos os movimentos à minha volta.
Sofri com a perda de peões. Sofrerei com a perda de meu rei, mesmo sabendo que o sacrifício será necessário para o andamento do jogo, antes mesmo de meu rei tombar.
Oportunidade de lances com incrível vista para os desdobramentos desse jogo que a vida é.
Preço a se pagar? O que for necessário.

- Cheque!
- …

20 março 2011

Desligo.

Você não é apaixonante. Não é apaixonado. Você também não é tão forte quanto diz. Você não precisa se mostrar, ou muito menos se esconder. Você passou toda uma vida tentando encontrar uma resposta para seus sentimentos, sempre desconectados, sempre tão avulsos e incompreensíveis.

05 março 2011

Me espera.

Ao som de Bachiana Brasileira n°4 (prelúdio) - Heitor Villa-Lobos.


Girar a chave na fechadura era o que ele esperara por todo o dia. Tinha sido uma sexta-feira carregada, daquelas que sugam todas as nossas energias e nos deixam sem ânimo para sequer conversar. Ele não conversava, não era de ter amigos. Não tinha ninguém para descarregar seus problemas. Era ele, e só. No apartamento, o relógio da sala marcava nove horas e trinta e sete minutos. Abriu a porta de vidro da sacada e sentiu o vento lhe soprar os fios de cabelo enquanto ao mesmo tempo fazia a cortina tremular. Naquele exato momento, seu gato se entrelaçava por suas pernas. Abaixou e afagou lhe a cabeça por um instante. Enquanto caminhava para a cozinha, ia tirando a gravata e desabotoando os botões superiores da camisa branca. Encheu um copo com um pouco de whisky e algumas poucas pedras de gelo. Para ele, era o suficiente. Completando seu ritual de desintoxicação psicológica, se dirigiu até seu aparelho de som. Villa-Lobos. "Bachiana Brasileira nº 4" começou então a tocar. Ele sabia do que precisava. Colocou a música para se repetir e se dirigiu novamente à sacada.
Ali estava ele. Um homem na altura dos seus vinte e oito anos, com um bom emprego que lhe sugava as energias em boa parte do tempo. Pensou em quando desejou fazer de tudo na vida e decidiu optar por aquilo. Curioso é que naquela época ele se imaginava exatamente como estava vivendo agora. Deu um pequeno gole na sua bebida, depois outro. Olhou para os prédios à sua frente, as luzes coloridas se casavam perfeitamente com o som da cidade, as buzinas, os rugidos da metrópole e os sopros persistentes do vento.
Ele sempre soube que era alguém sozinho. Sempre se sentiu assim. E aprendeu a lidar com isso, na medida do possível, depois de longos anos entre erros e mais erros em relacionamentos nunca consumados. Como justificativa mais plausível, apresentava a ele mesmo seu eu possessivo e passional. Sabia que por mais fechado que fosse, não suportaria um relacionamento e tudo que essa palavra pudesse representar.
Sempre teve um gosto relativamente estranho na escolha de suas paixões. Abdicava facilmente de qualquer beleza por um punhado de intelectualidade mesclado com uma essência completamente pura de quem se permite sonhar. Se apaixonava por vozes, pela forma de escrever de qualquer pessoa. Era obcecado por detalhes. E era completamente possessivo em relação a gostar de alguém. Se entrasse em algum relacionamento, ele com certeza sofreria, mas faria o outro sofrer muito mais. E isso, ele não queria. Era um defeito seu que ele não gostaria que ninguém soubesse.
Olhava novamente para as luzes da cidade enquanto dava mais um gole na sua dose de whisky. Pôs a mão instintivamente no seu bolso esquerdo e de lá tirou um maço de cigarros um pouco amassado. Em posse de um, o acendeu e começou a pensar. O gato agora estava ao seu lado, em cima da mureta da sacada. Eram os dois ali. Tão diferentes, mas tão iguais em alma... Tão solitários. Tinham apenas um ao outro. Ambos não faziam nenhum som, mas se comunicavam tão bem...
O homem foi até a cozinha, agora para buscar a garrafa de whisky e trazê-la até a sacada. Ao voltar, entrou em transe. Começou a relembrar sua infância, seus sonhos, seus anseios. Se viu novamente naquele patamar onde ele sempre sonhou estar. Mas faltava-lhe algo: uma companhia. Uma companhia de verdade. De fato, por anos ele descontou em um gato a ausência de um ser humano. Seus amigos todos tinham dado rumo às suas vidas, nenhum deles estava mais ao seu alcance e ele não podia fazer nada em relação a isso. Não gostava de telefonemas, não tinha tempo para escrever cartas ou e-mails. Foi quando se viu, pela primeira vez, com a necessidade de ter alguém com quem pudesse compartilhar todas as suas alegrias, todas as suas angústias. Seus medos, suas vitórias. Alguém para dividir a mesa no café da manhã. E a cidade ali, à sua frente, agora lhe apresentava "n" possibilidades de encontros. "N" pessoas com quem ele poderia tentar se relacionar. "Me espera?", foi o que ele conseguiu dizer.
Àquela altura da madrugada ninguém ouviria seus lamentos. Era a hora errada para ele ter um rompante de certeza como aquele. Ele agora se sentia incomodado com o fato de estar só. Encheu mais uma vez seu copo e acendeu outro cigarro. Pegou seu celular e passeou pelos contatos salvos na agenda. Parou em um. Ligava ou não? Se declarava ou esquecia tudo aquilo. Ele se sentia como se estivesse caindo mais uma vez no mesmo buraco. Já havia se declarado uma vez e não tinha boas lembranças disso.
Resolveu ligar. Caiu na caixa postal. Ele então deixou o seguinte recado, que foram os segundos de maior sinceridade que ele havia tido até então:
"Ei... Me desculpe por te ligar a essa hora. Mas estou apaixonado por você. Estou um pouco bêbado, o que me deu coragem para te dizer isso. Não estou pedindo nada em troca. E nem quero te assustar com esse rompante de sinceridade que estou tendo nesse momento. Justo eu, um homem de vinte e oito anos... Passei a minha vida toda fugindo de relacionamentos, hoje todos os meus amigos estão longe e não tenho ninguém com quem compartilhar minhas dúvidas ou conquistas. Enfim. Nem sei por que estou lhe dizendo isso. Boa noite. Durma bem."
Desligou o telefone e se sentiu a pessoa mais horrível do mundo. Decidiu ir ao banheiro. No meio do caminho seu telefone tocou. E incrivelmente do outro lado da linha uma voz sonolenta lhe disse algo que lhe fez sorrir como nunca havia sorrido antes:

"Oi. Você está aí? Posso confessar que também sinto o mesmo que você? Você está acordado, né? Olha... Eu não sei se o que eu estou fazendo é certo, mas... Eu perdi o sono e decidi sair de casa. Estou passando aí. Me espera? Acho que temos muito o que conversar..."

31 janeiro 2011

Caça ao Tesouro

Ao som de Mis Mejores Recuerdos - Diego Fontecilla.


Existem muitos segredos que não gostamos de comentar. Um deles tem mexido muito comigo ultimamente e mais uma vez gira em torno do meu passado e da minha memória sempre tão nostálgica. Neste momento existe uma trama dentro da minha cabeça que interliga lembranças, desejos, sensações. Uma trama que resolveu brincar de "caça ao tesouro" me entregando partes de um mapa. Tenho decifrado essas partes todas as noites, durante recorrentes sonhos; todos os dias, enquanto relembro histórias que estavam escondidas a cerca de 18 anos atrás. Talvez ninguém consiga entender o que estou sentindo agora. O peito apertado tem machucado meu coração. Justamente esse coração que sempre chamaram de forte. Nunca fui de chorar, mas dentro de mim estou morrendo em soluços. Juntei as peças do mapa e agora criei minha própria estratégia para resgatar um prêmio que ainda não sei ao certo qual é.
Sou do interior, apesar de ter parte da família morando em Goiânia. Isso me permitiu ter visitado esta cidade algumas vezes na minha infância. Minha memória recorda apenas detalhes: eu e meus pais sendo recebidos pelos tios na rodoviária, o nascer do sol daquela manhã visto do mezanino do prédio, minha blusa de frio de listras coloridas. Eu tinha apenas 5 anos. De volta a Mineiros alguns poucos anos mais tarde, com lembranças mais vivas, me recordo das inúmeras vezes em que retornei a Goiânia por conta de problemas de saúde da minha avó. Nenhuma dessas viagens se tornou marcante, mas os detalhes pipocam. Me lembro de segurar na mão do meu pai enquanto ele atravessava a avenida Tocantins para me comprar chicletes. Me lembro de sair da clínica com meu pai e minha avó para irmos almoçar do outro lado da rua. Me lembro da casa das primas onde minha vó sempre se hospedava enquanto estava passando pelo seu tratamento.
Eu tinha medo de Goiânia nessa época, já com meus 8 anos de idade. Tinha medo porque apesar das inúmeras vezes que vinha para cá, não sabia nada daqui. Não conhecia ruas, lugares, me sentia perdido entre tantos prédios, carros, pessoas. Lembro que isso me irritava, porque meu pai sabia exatamente cada rua que deveria pegar. Queria ser como ele e não conseguia. Hoje, 14 anos depois, a cidade que me engolia agora é engolida por mim. Papeis se inverteram e meu pai precisa de mim para conseguir andar pelas ruas daqui. Goiânia não me assusta mais.
Então paro para me lembrar de que nunca pensei em morar aqui. Vim para fazer faculdade. Eu, o último filho a concluir o ensino superior. Recordo da minha avó dizendo que o sonho dela era formar um dos dois únicos netos. Ela formou o primeiro e se foi. E não que eu me revolte agora, mas ela não conseguiu me esperar. Justo eu, que vim pra cidade que ela tanto adorava. E, caminhando hoje pelos mesmos lugares que passei na infância, me pego pensando em quão mágico seria poder caminhar junto com ela, revivendo junto com ela seus mesmos passos aqui. Não posso.
Me pego redescobrindo lugares. Me emocionei quando voltava da faculdade e o ônibus parou em um dos cruzamentos da avenida Tocantins. Olhei para o lado e reconheci o bar onde meu pai comprou os chicletes para mim. Ele continua lá e, apesar dos anos e das mudanças, consigo sentir seu interior. No fim do ano passado perguntei ao meu pai qual o endereço da clínica onde minha avó fazia seu tratamento. E me assustei porque durante meu estágio, passava pelo mesmo local todos os dias. A clínica e as lembranças estavam ali, era só virar uma esquina.
Há dois dias venho sonhando com minha avó. Sinto tanta falta dela, sinto falta do seu ar de "dondoca" enquanto caminhava em Goiânia e fazia suas compras. Nos sonhos ela revivia comigo, andava comigo pelos mesmos lugares por onde passamos juntos quando eu era criança. Eu pergunto "vó, lembra daqui" e vejo nos seus olhos a alegria de reviver tudo aquilo, apesar do seu sofrimento não revelado nunca. Como disse, ela adorava Goiânia e tratamento algum tiraria esses bons momentos dela.
Subitamente minha memória me leva para o dia em que ela se foi. Eu ainda morava em Mineiros. Lembro de ser forte, de resistir e ligar para os parentes daqui de Goiânia. Lembro de me irritar em seu velório por conta de gente desrespeitosa contando piadas lá fora. Lembro de voltar pra casa e trocar de roupa antes do seu enterro.
Como disse, choro em raros momentos. E esse dia foi o que eu mais chorei. Ver meu avô, fraco pelo Alzheimer, se despedir da "sua velha" e botar os óculos escuros bem femininos que foram dela enquanto fechavam seu caixão me desmontou por dentro e eu consegui me segurar. Enquanto, no cemitério, desciam seu caixão, percebi que nunca mais teria a companhia daquela vozinha linda, baixinha, que por anos cuidou de mim enquanto meus pais trabalhavam. Lembro também da minha mãe preocupada porque nunca tinha me visto chorar tanto. Minha mãe estava perdida. A mais emotiva numa família composta por ela e mais três homens vendo esses três homens chorando como bebês. Meu pai, filho dessa minha avó chorando muito, como eu jamais tinha visto. Meu irmão chorando muito. Eu soluçando, pedindo praquela dor parar.
Um ano depois de sua morte me mudei para cá e só agora descobri que vivia aqui há 16 anos atrás, mesmo que em poucos momentos. Os sonhos com minha avó despertaram em mim aspectos que eu não conhecia, me fizeram sentir frágil, bastante enfraquecido, e cheguei a conclusão que essa tal "caça ao tesouro" me dará força para abrir esse baú. Juntei todas as peças e só então me lembrei de um dia em que, aqui em Goiânia, minha vó havia perguntado qual meu tipo sanguíneo. Ela tinha uma deficiência no sangue e precisava de transfusões a cada quatro meses. Quando disse qual era, lembro que ela riu e disse que era o mesmo que o meu.
Vó, onde quer que você esteja, seja por qual motivo for, interpretei meus sonhos com você. Tínhamos o mesmo tipo sanguíneo e nunca percebi que hoje, se você ainda estivesse viva, poderia eu ser o seu doador particular. Sei que não há mais tempo para isso. Você se foi. Mas eu não. A sua clínica ainda continua lá e precisa de doadores. Não posso mais te ajudar, mas ainda existem inúmeras pessoas nesse mundo com seu mesmo problema, que precisam de ajuda. Quero poder fazer a minha parte. Quero doar meu sangue em gratidão a você. Quero reviver nossa história indo ao mesmo centro clínico apenas para doar o sangue que nunca pude te dar. É uma atitude louvável e bonita. Mas para mim é mais que isso. Significa finalmente que conectei todas as minhas lembranças em um ponto só.